quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Homero: nosso primeiro professor?

(Contribuindo para a blogagem coletiva - Professores do Brasil)

O conhecimento da educação antiga constitui-se numa das fontes para um melhor conhecimento da cultura contemporânea. Entender sua tradição pedagógica, seu regime e suas aspirações educacionais faz-nos compreender melhor as práticas e ideais educativos atuais, bem como analisá-los e questionar suas estruturas.
Nessa busca, é relevante consultar um livro de 1966, do até então professor da Sorbonne, Henri-Irínée Marrou: História da Educação na Antiguidade. Utilizando a 4ª edição de 1975, nota-se que o livro, como descrito em sua contra-capa, é “um trabalho de síntese erudita, que incorpora e coordena os resultados das mais recentes disquisições efetuadas pela investigação moderna [conforme sua época]”, no campo de conhecimento do tema. Comprova-se essa citação com a vasta e diversa bibliografia, contendo obras que vão desde a Ilíada e a Odisséia de Homero até as contemporâneas do autor, sem limitar-se apenas a fontes sobre educação.
Busto de Homero, cópia romana do séc. II a partir do original grego (séc II a.C.)A obra inicia-se afirmando que Homero foi a origem da cultura e educação gregas, com uma análise da Ilíada: citando a época em que foi escrita, bem como o tempo a que se remete (a imagem de uma idade heróica, anterior a de Homero) e seu caráter poético e filológico.
Segundo o autor, a cultura grega foi originalmente privilégio de uma “aristocracia” de guerreiros (anacronismos à parte, “cavalheiros”, como o autor cita), análogos ao cavaleiros medievais em seu refinamento e habilidade. Portanto, é necessária uma educação adequada a essa elite, tendo como figura típica Quirão, o centauro educador de Aquiles. Essa pedagogia é baseada na relação entre pupilo e mentor (esse último como confiado do pai do pupilo), utilizando como texto-base a obra de Homero: um manual ético, um tratado do ideal, a partir do exemplo dos heróis homéricos, como o cultivo da honra, da aspiração pela superioridade, expor-se ao ódio por um fim nobre - a alta idéia da glória.

Sobre a educação espartana, Marrou lembra que, como uma cidade de semi-iletrados onde a prática militar é sua principal característica, a educação heróica de Homero perpetua-se. Com a dificuldade da escassez de fontes especificamente sobre a educação em Esparta - as fontes sobre sua cultura são mais comuns - o autor diz que é essencialmente militar, voltada para a formação do soldado com um ideal coletivo: devoção aos interesses do “Estado”, morrer pelo coletivo, caracterizando, assim, uma outra concepção de honra: resistir numa batalha. A educação espartana não tem por fim selecionar heróis, mas formar uma cidade inteira de heróis. Para tanto, a educação é baseada na prática de esportes (conquistando, assim, grande sucesso nos Jogos Olímpicos), com bons treinadores e inovações técnicas. A música era o centro da cultura, com a dança (ginástica) e o canto (poesia) incluídas na pedagogia, sempre com o objetivo de formar heróis virtuosos.
Esparta foi a predecessora da cultura arcaica, atraía grandes artistas estrangeiros e a vida artística e esportiva era manifestada coletivamente nas grandes festas religiosas. Com a Grécia evoluindo para a época clássica, Esparta resistiu às inovações das outras cidades, estacionando sua evolução e, finalmente, estruturando a severa educação espartana clássica, a qual faz uma espécie de “adestramento” do hoplita, aceitando-se somente crianças fisicamente perfeitas que, a partir dos 7 anos de idade passam a pertencer ao “Estado”, onde ficam internadas até os 30 anos num regime de educação coletiva e vida em comunidade. Essa “criação” praticamente sacrifica o aspecto intelectual, quando mesmo as artes ainda cultivadas eram utilizadas para fins militares e morais. Marrou finaliza com uma crítica negativa à época clássica de Esparta.

A Apoteose de Homero - Jean Auguste Dominique Ingres, 1827Foi em Atenas que a educação perdeu seu caráter essencialmente militar, quando seus habitantes despiram-se de suas armaduras e armas, adotando um estilo de vida menos rude e mais civilizado, onde as técnicas guerreiras eram consideradas esporte ou arte. Inicialmente a educação continuava a ser privilégio de uma elite, mas o aumento da demanda de alunos gerou a democratização do ensino, surgindo, assim, a escola, onde ensinava-se educação física, música e poesia - sempre objetivando seu aspecto moral; com a difusão da escrita, tornou-se necessário também o ensino das letras nas escolas. O ideal dessa educação antiga continua sendo de ordem ética: moralidade e beleza física.

Partindo para a transição à educação intelectual, o autor fala das escolas de Medicina e do desenvolvimento da Filosofia - resultando na criação da escola filosófica. Após a crise da tirania, a vida política tornou-se o aspecto fundamental e, a partir de então, a educação visa a formação do político.
Os sofistas exerciam o papel de educadores nessa nova pedagogia. Tem-se no livro a explicação de como realizavam seu ofício e também como faziam para conseguir alunos - originando, assim, a prática das Conferências. Ensinavam a dialética (a arte de persuadir) e a retórica (a arte de falar), bem como a cultura em geral, realizando uma inovação na educação grega. Sócrates (também um educador), fazia oposição à pedagogia dos sofistas; entretanto, entre os próprios sofistas havia divergências: uma contribuição para a evolução da educação.

Dessa forma, entende-se como a educação grega deixou para trás seu caráter essencialmente militar, voltando-se à formação do intelecto e à capacitação para a arte da política. Interessante notar como nossos antepassados clássicos preocupavam-se em preparar seus alunos para a vida, enquanto, passados tantos séculos, nossa cultura contemporânea preocupa-se em formar o “consumidor”, marginalizando a formação do “cidadão”.
Charge de Santiago para A Charge Online

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Blogagem coletiva - "Professores do Brasil"

O Ponderantes está promovendo a blogagem coletiva “Professores do Brasil”. O evento ocorrerá na mesma data em que se comemora o dia desses profissionais que, embora sejam imprescindíveis à sociedade, estão cada vez menos valorizados.
Se você quiser participar, deverá publicar em seu blog um post relacionado ao tema proposto – “Professores do Brasil” – no próximo dia 15 de outubro. Seu post pode conter, por exemplo, um texto crítico, um protesto, uma homenagem através de poesia, um relato sobre um professor que marcou sua vida, uma imagem, um vídeo ou o que sua criatividade desejar.

sábado, 10 de outubro de 2009

Constituição Brasileira

Charge de Jean, Folha de S. Paulo, 07/11/2008Essa semana, no dia 5 de outubro, a Constituição Brasileira de 1988 completou seus 21 anos de promulgação. Apesar deste aniversário não ter sido muito divulgado na mídia, sabemos da importância de nossa Constituição "mais recente" e, principalmente, refletir sobre nossas ações para não deixar que as liberdades, direitos e deveres previstos nessa Carta não fiquem apenas no papel (ou no espaço virtual!).

Aproveitando a ocasião, podemos lembrar que esta Constituição, promulgada por uma Assembléia Constituinte eleita por voto popular, foi precedida por duas outras Cartas que não tiveram a mesma origem: a Constituição de 1969, outorgada, originou-se de uma emenda - decretada pelos "ministros militares no exercício da Presidência da República" - à Constituição de 1967, que é considerada semi-outorgada por ter sido escrita por uma Assembléia originária do Congresso Nacional com membros afastados por pressão dos militares.
Assim, antes de 1988, a última Carta promulgada foi a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1946, dita liberal e com pretensões de pôr fim à Era ditatorial do Estado Novo.
Com essa Constituição de 1946, temos um bom subsídio para refeltir com os alunos sobre as liberdades, direitos e deveres dessa Carta: as heranças que recebeu da Constituição outorgada de 1937 e seu legado para nossa "atual" Constituição.
Eis alguns trechos da Carta de 1946:

TÍTULO IV
CAPÍTULO I
Art 129 - São brasileiros:
I - os nascidos no Brasil, ainda que de pais estrangeiros, não residindo estes a serviço do seu país; (...)
Art 130 - Perde a nacionalidade o brasileiro: (...)
III - que, por sentença judiciária, em processo que a lei estabelecer, tiver cancelada a sua naturalização, por exercer atividade nociva ao interesse nacional. (...)
Art 132 - Não podem alistar-se eleitores:
I - os analfabetos;
II - os que não saibam exprimir-se na língua nacional;
III - os que estejam privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos.
Parágrafo único - Também não podem alistar-se eleitores as praças de pré, salvo os aspirantes a oficial, os suboficiais, os subtenentes, os sargentos e os alunos das escolas militares de ensino superior. (...)
Art 134 - O sufrágio é universal e, direto; o voto é secreto; e fica assegurada a representação proporcional dos Partidos Políticos nacionais, na forma que a lei estabelecer.

CAPÍTULO II
Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º Todos são iguais perante a lei.
§ 2º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
(...)
§ 5º - É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe. (...)
§ 7º - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil. (...)
§ 12 - É garantida a liberdade de associação para fins lícitos. Nenhuma associação poderá ser compulsoriamente dissolvida senão em virtude de sentença judiciária.
§ 13 - É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem.

Apesar de ser considerada liberal, a Constituição de 1946 ainda mantém algumas restrições às liberdades, ou concede limitações a essas liberdades; o que pode ser observado no Artigo 132 e nos §5º, 7º e 13 do Artigo 141. Essas liberdades são restringidas por motivos como “exercer atividade nociva ao interesse nacional”, “subverter a ordem política e social”, contrariar “a ordem pública e os bons costumes”.
Ainda sobre o § 5º do Art 141, ao ler seu texto, tem-se a impressão de seu caráter liberal, por garantir a livre manifestação de pensamento. Entretanto, permite a censura de apresentações públicas e não tolera processos que venham a subverter a ordem política e social, sem definir com clareza o que seriam tais processos.

Essas informações nos permitem refletir com os alunos sobre como nossas dificuldades em "tirar as leis do papel" não estão somente nas atitudes das pessoas, mas também na passibilidade dessas Conflito na Praça da Sé em ocasião da extinção do PCB. São Paulo, 1947leis em relação à sua interpretação. As críticas aos Artigos citados são apenas uma amostra de como essa Constituição de 1946, apesar de simbolizar um avanço para a democracia brasileira, ainda possuía muitas falhas atreladas aos interesses dos empresários urbanos e latifundiários, fragilizando-a e permitindo que, por exemplo, o presidente Dutra utilizasse o trecho do Artigo 141, § 13: "É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime democrático..." para cassar o Partido Comunista do Brasil, mesmo com o § anterior prevendo que "É garantida a liberdade de associação para fins lícitos." (O que seriam fins considerados "lícitos"?).
Fragilidade esta que contribuiu para que o Brasil ainda estivesse engatinhando em direção à democracia, caminho este que fora interrompido por décadas de Ditadura Militar.


O texto abaixo é um trecho do discurso do presidente João Goulart no Comício das Reformas, realizado no dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro (às vésperas de ser derrubado pelos militares):
Discurso de Jango no Comício das Reformas"(...) não receio ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar – e tenho proclamado e continuarei a proclamando em todos os recantos da Pátria – a necessidade de revisão da Constituição da nossa República, que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento desta Nação. A Constituição atual, trabalhadores, é uma Constituição antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada; uma estrutura injusta e desumana. O povo quer que se amplie a democracia, quer que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facilitado participar da vida política do País, através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e que seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações, ideológicas ou religiosas."

Necessidade de “que se amplie a democracia”, pôr “fim aos privilégios de uma minoria”, e lutar para “que a propriedade seja acessível”, e que todos possam realmente “participar da vida política do país” são anseios que temos até hoje. Nossos alunos, ainda que muito jovens, podem ter, através de seus professores e de todos esses subsídios, consciência de que serão os próximos a lutar por isso.