segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O céu sobre Berlim

“Ninguém tem a intenção de construir um muro”, afirmou o chefe de governo e secretário-geral do Partido Socialista Unitário da República Democrática Alemã (RDA), Walter Ulbricht, em junho de 1961. Dois meses depois, no entanto, ele foi construído.
No dia 12 de agosto, o Conselho de Ministros da RDA decidiu cercar as fronteiras com a República Federal da Alemanha, “para impedir a atividade inimiga das forças revanchistas e militares”. No dia 13, começou a construção do Muro de Berlim, que entrou para o linguajar dos alemães orientais como “muralha de proteção antifascista” e para os ocidentais como “o muro da vergonha”. Na justificativa oficial, porém, não foi citada uma palavra sobre o êxodo da população alemã oriental para o oeste.
O chefe do governo Walter Ulbricht encarregou Erich Honecker, então secretário do Conselho Nacional de Defesa, de cercar a fronteira. À 1h05 da noite de 13 de agosto de 1961, apagou-se a iluminação de rua no Portão de Brandemburgo, o cartão de visita da cidade.
Aproximadamente 20 mil policiais da Guarda de Fronteira, soldados, funcionários do Stasi (o poderoso serviço secreto e de segurança da RDA), além de milícias de trabalhadores, avançaram rumo à demarcação do setor ocidental. Cercas de arame farpado e blocos de concreto armado foram instalados. Onde isso ainda não era possível, tanques bloquearam a passagem. A cerca ao longo dos três setores ocidentais de Berlim dividiu ruas, cemitérios, linhas de bonde e trens, propriedades e até famílias, da noite para o dia. Seis horas depois, a fronteira, contornando os 155 km de Berlim Ocidental, estava toda cercada. A população da Alemanha Oriental não podia mais sair. Posteriormente, estabeleceu-se um rigoroso sistema de autorização de viagens ao Ocidente, que continuaram sendo um sonho para a grande maioria dos alemães orientais.
O Muro de Berlim, propriamente dito, tinha até 4,20m de altura em alguns trechos. Uma segunda fortificação foi construída posteriormente. Ao seu redor foi demarcada uma faixa de segurança, também conhecida como “faixa da morte”, que chegava a ter cem metros de largura. Ali se encontravam cerca de 300 torres de vigilância, 20 bunkers (instalações antiaéreas subterrâneas), 260 canis e inúmeros postes com holofotes. Os soldados receberam ordem de atirar e impedir qualquer fuga “usando todos os recursos disponíveis”. Por trás do Muro de quatro metros de altura, havia uma segunda barreira, cercas com alarme e profundas trincheiras antiveículos. Holofotes, cães e minas completavam o esquema de segurança que fazia do Muro uma fortaleza praticamente inexpugnável.

Por quase três décadas os alemães viveram esse conflito entre o real e o imaginário, o concreto e o abstrato acerca da separação de dois mundos. Os efeitos desses muros (que dividiam os limites geográficos e as mentes das pessoas) influenciaram a - talvez - maior obra do cineasta alemão Wim Wenders, em um filme conhecido aqui como "Asas do Desejo" - título já oriundo da tradução em inglês, o qual já perde seu sentido mais filosófico.
O título original, Der Himmel Über Berlim (Alemanha-França, 1987) já expõe a interpretação do autor sobre o muro: "O(s) céu(s) sobre Berlim". Afinal, do céu não há separação entre mundos; lá de cima, é possível se ter acesso a tudo e a todos.
Acesso este disponível aos anjos Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander), que exploram a Berlim ocidental poucos anos antes da queda, analisando o comportamento e os sentimentos humanos e, sem deixar de cumprir seu papel celeste, compartilham entre si observações sobre gestos e momentos despercebidos pelos mortais.
Damiel, Cassiel e os outros anjos só podem ser vistos por crianças (ainda não massacradas pela dura rotina da Alemanha dividida), podem estar em qualquer lugar a qualquer momento e... enxergam em preto-e-branco! Ou melhor, sempre que o Wim Wenders nos dá a visão do anjo, a película atende somente à escala do cinza. Acredito que o cineasta lança mão desse recurso para dar ao espectador a noção de que os anjos não podem ter sensações físicas e emocionais como os mortais.
O encontro entre dois mundos se dá quando Damiel conhece e se apaixona por Mariom (Solveig Dommartin) uma trapezista de um circo decadente, que vê sua Companhia partir enquanto ela fica na solidão. É incrível a forma como Wenders trabalha nosso imaginário sobre dois mundos separados por uma força maior: enquanto Mariom, sozinha em seu quarto, perde-se em pensamentos sobre sua vida, Damiel a observa e, por vezes, acredita que a trapezista percebe sua presença. Os personagens, tão próximos no cenário, conseguem nos transmitir o quão distantes estão entre si.
Assim, esse amor platônico às avessas continua, até que Damiel conhece um ex-anjo e percebe que é possível tornar-se um mortal (passar para o outro lado do Muro) e resolve cair. Até aqui, vale a observação de que o filme já está sendo expresso em três línguas: alemão, francês (origem do circo) e inglês (pois o ex-anjo é um cineasta norte-americano). Afinal, os idiomas também são uma fronteira que, neste caso, parece não existir para os personagens.
Damiel cai e tudo se torna colorido. Mais irônico é que o agora mortal, como uma criança, não conhece as cores, aprendendo-as através das pixações do Muro de Berlim. Maravilha-se com a dor e com o gosto do sangue após sua queda e delicia-se com um café bem quente, que um homem (mortal, já acostumado com as belas pequenas coisas da vida), num ato de gentileza, paga ao novato humano.
Damiel encontra sua amada num show de Nick Cave, e a bela trapezista parece já conhecê-lo há tempos (assim como os antigos conterrâneos alemães, antes de sua separação) e a intimidade dos dois impressiona e faz-nos acreditar que o Muro nunca existiu, pois a distância que havia entre os dois não poderia ser definida nem como física, nem como temporal.

(...)

No dia 9 de novembro de 1989, o jornalista italiano Riccardo Ehrman fez uma pergunta que mudou o mundo. Em uma coletiva de imprensa, na qual a RDA divulgava sua nova lei de viagens, Ehrman obteve do porta-voz do governo, Günter Schabowski, uma declaração que não havia sido planejada pelo Conselho Ministerial: a de que viagens para o Ocidente seriam permitidas a partir daquele exato momento. A agência italiana de notícias ANSA, para qual Ehrman trabalhava, publicou exclusivamente a notícia de que o Muro havia caído. As imagens do evento rodaram o mundo. Logo, milhares de cidadãos da RDA correram para os postos fronteiriços.
Naquele dia fatídico, Riccardo Ehrman chegara atrasado ao evento. Como não havia mais cadeiras, agachara-se bem à frente de Schabowski, com o bloco de notícias no joelho. Schabowski proferiu então a declaração do Conselho Ministerial de que “viagens particulares ao exterior poderiam ser requeridas sem condições prévias – motivos ou relações de parentesco. A autorização seria fornecida em curto prazo. Viagens permanentes poderiam ser efetuadas a partir de qualquer posto fronteiriço da RDA para a RFA ou para Berlim Ocidental”.
A pergunta de Riccardo Ehrman foi: “Quando isso entra em vigor?”. Schabowski respondeu com a incerteza de um porta-voz: “Pelo que eu sei... imediatamente”. Foi o suficiente para que Ehrman se levantasse e deixasse o recinto. No seu artigo, escreveu: O mundo mudou. Hoje. Muitas agências falaram apenas numa simplificação da lei de viagens. Mas para Ehrman aquilo tinha um significado claro: o Muro havia caído.
Na noite do dia 9 de novembro de 1989, por volta das 22h, uma multidão pacífica marchou em direção aos pontos de passagem que havia no Muro de Berlim querendo ir para o outro lado. Os guardas da fronteira, com o inesperado de tudo aquilo, sem saber o que fazer, sem ordens, não tiveram outra alternativa senão em levantar as cancelas e deixar o povo passar.

Assim, dois anos antes da real queda do Muro de Berlim, Wim Wenders nos presenteava com a queda de Damiel, o anjo que ultrapassou a barreira entre o celeste e o mundano, aproximando dois mundos antes separados fisicamente, mas unidos pelo sentimento e pela vontade de pertencer a um só lugar.


Referências bibliográficas:
ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História. São Paulo: Ática, 1997.
BAILBY, Edouard. Berlim entre duas Alemanhas. Rio de Janeiro: Leitura, 1962.
ELIAS, Norbert. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
GERHARDT, Alfredo. O Muro de Berlim e as duas Alemanhas. São Paulo: Fulgor, 1963.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Nenhum comentário: