domingo, 15 de novembro de 2009

República alegórica

Nosso cotidiano é repleto de símbolos e alegorias. Abrimos os jornais e observamos nossos políticos serem representados por figuras carregadas de significados, como um porco, um marajá ou um burro. Atribuímos a profissão de padeiro aos portugueses. Os chineses e japoneses são donos de pastelaria e são muito inteligentes, enquanto teimamos em dizer que nossos irmãos lusitanos são "burros" (outra alegoria, representando a falta de inteligência)... Não precisamos trabalhar no dia 21 de abril ou no 15 de novembro, mas não lembramos por que; apenas agradecemos por não termos que aturar nosso insuportável cotidiano. No dia em que é lembrada a morte (por enforcamento e esquartejamento) de Tiradentes, fazemos um churrasco. Porém, lembramos do significado do 7 de setembro, pois levamos nosso filho para a principal avenida da cidade a fim de reuni-lo com seus colegas e professores da escola para celebrar a Independência numa passeata. E nos orgulhamos e tiramos fotos. Principalmente se nosso filho está carregando a bandeira nacional, símbolo enraizado em nossos corações, o qual também nos identifica em eventos mundiais, como a Copa do Mundo ou as Olimpíadas.
'O Malho', 12/11/1904Existe uma lista infindável de símbolos e alegorias que se encontram enraizados em nosso imaginário (como o hino e a bandeira nacional) ou que são apenas tentativas de formá-lo (como o feriado de 15 de novembro ou a ideia de que a justiça é cega). A Proclamação da República no Brasil é considerada um evento histórico muito controvertido, no qual houve uma verdadeira batalha entre ideologias republicanas pela legitimação do novo regime. Dentre as formas buscadas para essa legitimação, a elaboração de um imaginário social é parte integrante. Nessa elaboração, foi dada muita importância à expressão dos sentimentos republicanos através de símbolos, alegorias, rituais e mitos. Atingir o imaginário popular a fim de agregar-lhe valores republicanos era um dos principais objetivos dos envolvidos na citada batalha. Nesta empresa, além do problema das divergências entre as correntes ideológicas envolvidas, encontrava-se também o fato da República ter sido proclamada sem a participação popular. Daí a necessidade de se criar um imaginário social sobre a República. Não basta mostrar ou inventar a verdade, é necessário fazer com que o povo a ame, apoderando-se de sua imaginação, formando almas.

Na busca pelo entendimento da legitimação da República brasileira, o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, em sua obra “A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil”, concentra-se no tema da batalha pelo imaginário popular republicano.

No mundo moderno, a ideologia é o instrumento para a legitimação de regimes políticos. Mantendo sua tradição de exportador de matéria-prima e importador de manufaturados, ideias e instituições, no contexto histórico da proclamação da República brasileira havia três correntes ideológicas: o liberalismo à maneira norte-americana (prezava a individualidade), o jacobinismo à francesa (prezava o coletivo) e o positivismo (divididos entre os positivistas e os positivistas ortodoxos). Supunham modelos de república, de organização da sociedade, carregados de aspectos utópicos e visionários. Essas ideologias disputavam a definição da natureza do novo regime político brasileiro. Nessa batalha, cada uma delas, à sua maneira, defendia o envolvimento popular na vida política.
Dentre os três distintos modelos de república disponíveis aos brasileiros, o norte-americano e o positivista davam ênfase à organização do poder, enquanto o jacobinismo colocava a intervenção popular como fundamento do novo regime. Com exceção de poucos radicais, os vários grupos ideológicos acabavam dando ênfase ao Estado. A dificuldade brasileira, tanto com os modelos antigos quanto os modernos, foi a falta da existência anterior do sentimento de comunidade, de identidade coletiva, de pertencer a uma nação. Sem esse sentimento, negligencia-se o fato universal da diversidade e do conflito.

'A Proclamção da República', de Henrique BernadelliNessa busca pela criação de um imaginário sobre a República, os vencedores do 15 de novembro tentaram construir uma versão oficial dos fatos, ampliando ao máximo o papel dos atores principais e reduzindo ao mínimo a parte que coube ao acaso. Iniciava-se a batalha pelo estabelecimento do mito de origem. Nesta luta, o embate se dava entre os partidários de Deodoro, Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva e Floriano Peixoto. A luta maior é pela qualificação de fundador, entre Deodoro e Benjamin Constant e se estende até hoje. Com a análise das tentativas de construção desse mito de origem, para o autor, pode-se descobrir as contradições que marcaram o início do regime, mesmo entre os que o promoveram: o mito da origem ficou inconcluso, assim como a República. Vistas essas divergências, nota-se a dificuldade em encontrar ou construir um herói para o novo regime. O tema do herói interessa ao autor por ser um instrumento eficaz para atingir a mente e o coração do povo. Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias, pontos de referência para a identificação coletiva. No caso da República brasileira, a construção do herói pode servir também para compensar e preencher o vazio da participação civil em sua proclamação. O personagem que aos poucos se revelou capaz de atender às exigências do mito não estava presente no evento da proclamação: Tiradentes.
'Tiradentes', de Décio VillaresEsse patriota, em seus últimos dias na prisão antes da execução, transformou-se num místico por força dessa experiência traumática e da lavagem cerebral que sofreu pelos frades. Esse misticismo final não destruiu seu apelo patriótico. A coragem que demonstrou vinha do fervor religioso. Assumiu explicitamente a posição de mártir, identificou-se abertamente com Cristo. Tudo isso se encaixava perfeitamente no sentimento popular, marcado pela religiosidade cristã. Não dividia as pessoas ou as classes sociais. Ligava a República à Independência e indicava o caminho para a liberdade. Até os dias atuais, sua figura é utilizada por conservadores e liberais, por revolucionários e reacionários. Tanto pela esquerda quanto pela direita. O autor conclui que este é o segredo para a vitalidade desse herói: a ambiguidade.

'República', de Décio VillaresInteressou também ao autor a utilização da alegoria feminina no imaginário republicano francês, e sua tentativa de importação pelos brasileiros. A alegoria da Primeira República francesa inspira-se na tradição clássica da deusa Atena. Na Segunda República, a alegoria agora é apresentada como uma mulher amamentando duas crianças, retirando o aspecto belicoso anterior. No período que precedeu a Terceira República, com a luta contra Napoleão III, recuperou-se a antiga representação. Como reação, o governo incentivou o culto à Virgem Maria. Eis uma batalha de cultos.
'Alegoria da República', de Manoel Lopes RodriguesNa importação dessa alegoria pelo Brasil, o esforço inicial deveu-se aos cartunistas, os quais utilizaram o modelo clássico. Apesar disso, os pintores, excetuando-se os positivistas, praticamente ignoraram o simbolismo feminino para a República. No caso dos positivistas, a mulher poderia ser utilizada na representação da escala dos valores positivistas, fugindo da representação clássica e da identificação com a mulher brasileira. Porém, este problema de identificação da alegoria com as brasileiras foi resolvido de forma prejudicial para a República. O desapontamento quanto aos rumos que a república brasileira A alegoria da república francesa, junto à 'irmã mais nova' brasileiratomara foi expresso pelos caricaturistas, que passaram a utilizar a figura feminina para ridicularizar a República. Prostitutas e velhas cansadas, essas eram as alegorias que representavam o resultado da república no Brasil. A representação feminina que não obteve caráter pejorativo, que se identificou com o povo, foi promovida pelo governo: o culto à Virgem Maria, representado na imagem de Nossa Senhora Aparecida. Além das profundas raízes católicas, essa imagem é negra, identificando-se melhor com a mulher brasileira. A batalha por essa alegoria no Brasil terminou com a vitória do religioso sobre o cívico.

Parte-se agora para a discussão da formação dos símbolos nacionais mais evidentes e de uso obrigatório: a bandeira e o hino. A batalha decisiva agora se volta para a representação oficial da República. Os positivistas conseguiram o mais importante: a aceitação popular. Mantendo-se algumas características da antiga bandeira, era mantida também a tradição cultural e cívica da população. Além disso, anunciava um futuro próspero com a divisa 'A pátria', de Pedro Bruno“Ordem e Progresso”. Dessa forma, foi feita a ligação entre o passado, o presente e o futuro. No caso do hino, a vitória foi completamente da tradição. O hino composto por Francisco Manuel da Silva já se enraizara na tradição popular, tornando-se um símbolo da nação. O autor conclui que a República só teve êxito quando se voltou às tradições mais profundas, mesmo algumas sendo alheias às suas características.

Assim, José Murilo de Carvalho analisou as diversas formas e meios para a criação de símbolos, alegorias e rituais que visavam legitimar a República. Para tanto, precisou ir além da historiografia e dos documentos oficiais, utilizando-se de periódicos, registros de depoimentos, pinturas e esculturas, analisando-os de forma a conceber a visão de mundo das diferentes classes sociais e ideológicas, compreendendo a visão geral daquela época, contribuindo na compreensão da atual. Como a maioria das ideias e símbolos utilizados é importada, o autor buscou explicar historicamente a formação destes em seus países de origem, dando ênfase ao positivismo; isso se deveu à habilidade dos positivistas em articular símbolos, elemento interessante ao autor em sua proposta. Particularmente, apreciei as análises sobre as pinturas, caricaturas e esculturas, nas quais cada detalhe é carregado de significado. Conclui-se, portanto, que os esforços das correntes ideológicas republicanas falharam na sua tentativa de criar um imaginário sobre a República. A ausência popular na proclamação criou uma grande barreira para a legitimação do novo regime, o qual obteve êxito apenas quando se voltou à tradição religiosa e imperial. Após essa contribuição do autor, pode-se entender melhor o fato de não lembrarmos porque não precisamos trabalhar no dia 15 de novembro e por que já nascemos amando a bandeira nacional, como se ela já existisse por si mesma. Porém, um mito, mesmo quando muito forte, deve ser constantemente alimentado. Enquanto somos crianças em idade escolar, nossa professora nos lembra todo ano da importância de Tiradentes, e confundimos sua figura quando ela nos diz que ele morreu por nós; contudo, quando crescemos, esquecemos por que existe o feriado de 21 de abril, pois ninguém nos lembra de seu significado. E fazemos um churrasco.

Referência bibliográfica:
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Nenhum comentário: