Nosso cotidiano é repleto de símbolos e alegorias. Abrimos os jornais e observamos nossos políticos serem representados por figuras carregadas de significados, como um porco, um marajá ou um burro. Atribuímos a profissão de padeiro aos portugueses. Os chineses e japoneses são donos de pastelaria e são muito inteligentes, enquanto teimamos em dizer que nossos irmãos lusitanos são "burros" (outra alegoria, representando a falta de inteligência)... Não precisamos trabalhar no dia 21 de abril ou no 15 de novembro, mas não lembramos por que; apenas agradecemos por não termos que aturar nosso insuportável cotidiano. No dia em que é lembrada a morte (por enforcamento e esquartejamento) de Tiradentes, fazemos um churrasco. Porém, lembramos do significado do 7 de setembro, pois levamos nosso filho para a principal avenida da cidade a fim de reuni-lo com seus colegas e professores da escola para celebrar a Independência numa passeata. E nos orgulhamos e tiramos fotos. Principalmente se nosso filho está carregando a bandeira nacional, símbolo enraizado em nossos corações, o qual também nos identifica em eventos mundiais, como a Copa do Mundo ou as Olimpíadas.

Na busca pelo entendimento da legitimação da República brasileira, o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, em sua obra “A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil”, concentra-se no tema da batalha pelo imaginário popular republicano.
No mundo moderno, a ideologia é o instrumento para a legitimação de regimes políticos. Mantendo sua tradição de exportador de matéria-prima e importador de manufaturados, ideias e instituições, no contexto histórico da proclamação da República brasileira havia três correntes ideológicas: o liberalismo à maneira norte-americana (prezava a individualidade), o jacobinismo à francesa (prezava o coletivo) e o positivismo (divididos entre os positivistas e os positivistas ortodoxos). Supunham modelos de república, de organização da sociedade, carregados de aspectos utópicos e visionários. Essas ideologias disputavam a definição da natureza do novo regime político brasileiro. Nessa batalha, cada uma delas, à sua maneira, defendia o envolvimento popular na vida política.
Dentre os três distintos modelos de república disponíveis aos brasileiros, o norte-americano e o positivista davam ênfase à organização do poder, enquanto o jacobinismo colocava a intervenção popular como fundamento do novo regime. Com exceção de poucos radicais, os vários grupos ideológicos acabavam dando ênfase ao Estado. A dificuldade brasileira, tanto com os modelos antigos quanto os modernos, foi a falta da existência anterior do sentimento de comunidade, de identidade coletiva, de pertencer a uma nação. Sem esse sentimento, negligencia-se o fato universal da diversidade e do conflito.






Parte-se agora para a discussão da formação dos símbolos nacionais mais evidentes e de uso obrigatório: a bandeira e o hino. A batalha decisiva agora se volta para a representação oficial da República. Os positivistas conseguiram o mais importante: a aceitação popular. Mantendo-se algumas características da antiga bandeira, era mantida também a tradição cultural e cívica da população. Além disso, anunciava um futuro próspero com a divisa
“Ordem e Progresso”. Dessa forma, foi feita a ligação entre o passado, o presente e o futuro. No caso do hino, a vitória foi completamente da tradição. O hino composto por Francisco Manuel da Silva já se enraizara na tradição popular, tornando-se um símbolo da nação. O autor conclui que a República só teve êxito quando se voltou às tradições mais profundas, mesmo algumas sendo alheias às suas características.

Assim, José Murilo de Carvalho analisou as diversas formas e meios para a criação de símbolos, alegorias e rituais que visavam legitimar a República. Para tanto, precisou ir além da historiografia e dos documentos oficiais, utilizando-se de periódicos, registros de depoimentos, pinturas e esculturas, analisando-os de forma a conceber a visão de mundo das diferentes classes sociais e ideológicas, compreendendo a visão geral daquela época, contribuindo na compreensão da atual. Como a maioria das ideias e símbolos utilizados é importada, o autor buscou explicar historicamente a formação destes em seus países de origem, dando ênfase ao positivismo; isso se deveu à habilidade dos positivistas em articular símbolos, elemento interessante ao autor em sua proposta. Particularmente, apreciei as análises sobre as pinturas, caricaturas e esculturas, nas quais cada detalhe é carregado de significado. Conclui-se, portanto, que os esforços das correntes ideológicas republicanas falharam na sua tentativa de criar um imaginário sobre a República. A ausência popular na proclamação criou uma grande barreira para a legitimação do novo regime, o qual obteve êxito apenas quando se voltou à tradição religiosa e imperial. Após essa contribuição do autor, pode-se entender melhor o fato de não lembrarmos porque não precisamos trabalhar no dia 15 de novembro e por que já nascemos amando a bandeira nacional, como se ela já existisse por si mesma. Porém, um mito, mesmo quando muito forte, deve ser constantemente alimentado. Enquanto somos crianças em idade escolar, nossa professora nos lembra todo ano da importância de Tiradentes, e confundimos sua figura quando ela nos diz que ele morreu por nós; contudo, quando crescemos, esquecemos por que existe o feriado de 21 de abril, pois ninguém nos lembra de seu significado. E fazemos um churrasco.
Referência bibliográfica:
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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