segunda-feira, 30 de abril de 2012

Produção da identidade e da diferença, numa convivência democrática na sociedade contemporânea

Texto baseado nas vídeo-aulas do Prof. Mário Nunes (USP) e do Prof. Marcos Garcia Neira (USP), para o curso de Especialização "Ética, valores e cidadania na escola" (EVC - USP/Univesp). Acrescento minhas observações para contribuir no debate.

Sobre os estudos culturais e a produção da identidade e da diferença, o Prof. Mário Nunes define o sujeito pertencente à identidade como aquele que está de acordo com a norma, com o correto, enquanto a diferença a essa condição se estabelece quando o sujeito é visto como "o outro" - sendo que tal diferenciação pode ter natureza baseada na condição social, no gênero, etnia, idade, religião, entre outras.
Aqui está uma ótima oportunidade para resgatar um autor já comentado em outros posts desse blog, o crítico e ensaísta de origem búlgara Tzvetan Todorov, que em seu livro A Conquista da América - a questão do outro¹ considera que “pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu” (p. 3). Todorov escolhe a conquista da América para falar das relações entre o eu e o outro por sua característica de descoberta mais importante de nossa História: o sentimento de estranheza é geral e, a partir de então, nosso mundo torna-se finito; é a fundação de nossa identidade moderna.
Todorov já escrevia sobre isso há quase 15 anos, apesar do debate em questão ser relativamente recente. Ainda em sua vídeo-aula, o Prof. Mário Nunes destaca que identidade e diferença são construções culturais, e não uma essência que nasce com os sujeitos ou que são internalizadas do meio externo. Tal debate revela-se como uma oportunidade de se reconhecer a todos, na sua diferença e na sua capacidade de participação e tomada de decisão, para construção de um bem coletivo.

Imagem popular na internet, com exemplos de estereótipos atribuídos aos alunos,
dos quais muitos se veem como diferentes e buscam uma identidade.

Considerando a afirmação do Prof. Nunes de que "a identidade e a diferença estão envolvidas na luta pelos recursos simbólicos e materiais da sociedade", pode-se complementar a discussão com a vídeo-aula do Prof. Marcos Garcia Neira (USP). Enquanto dispõe sobre a convivência democrática e a sociedade contemporânea, Neira apresenta algumas imagens que ilustram situações socialmente homogêneas, contrastando com outras definidas como distintas da sociedade. Há que se considerar a sociedade contemporânea e suas transformações muito rápidas, e é interessante notar que ilustrar o "homogêneo x distinto" torna-se efêmero.
Será que, por exemplo, contrastar uma imagem de um casal heterossexual com outro homossexual, considerando o primeiro como socialmente homogêneo e o segundo como distinto é válido atualmente? Apesar da disseminação de "textos" culturais que reforçam a formação tradicional de um casal, existem também muitas produções humanas que tratam do homossexualismo com naturalidade, não diferenciando esta de outras formas de amor. Seguindo nos exemplos da vídeo-aula, será que realmente os pais somente sonham com as filhas na aula de balé (homogêneo) e nunca numa aula de hip hop (distinto)? Quando, atualmente, veem-se academias de dança que oferecem balé clássico e dança de rua no mesmo local (muitas vezes com os mesmos professores) fica difícil perceber qual identidade deve-se considerar homogênea.
Quantos casamentos ecumênicos, ou feito apenas de união civil, fazem-se hoje em dia? A tradição exige o padre e a igreja, mas nem todos se identificam mais com essas práticas. As mudanças são tão rápidas que se apresentam no vídeo imagens de lutadores de judô (homogêneo) e de luta livre (distinto)... Distinto? Se você está lendo este texto muito tempo depois da data de postagem, por favor, pesquise em sites de 2012 sobre qual a modalidade de arte marcial é mais popular. Seria uma chamada, justamente, de Artes Marciais Mistas (MMA)? Modalidade esta que se utiliza de conhecimentos de várias outras e está crescendo a cada dia. O judô pode ser um esporte olímpico, mas o que um menino responderia se pedíssemos para ele escolher entre ser lutador de MMA e outra arte marcial tradicional?

Voltando à questão dos textos culturais produzidos, nunca devemos desconsiderar o poder da mídia, talvez produtora dos mais influentes textos. Esta se adapta muito bem a essas transformações que colocam em xeque a noção de identidade e diferença. Todorov, na mesma obra citada acima, afirma que “se a compreensão não for acompanhada de um reconhecimento pleno do outro como sujeito, então essa compreensão corre o risco de ser utilizada com vistas à exploração, ao ‘tomar’; o saber será subordinado ao poder” (p. 128). É comum vermos propagandas e shows que pregam o amor livre, a igualdade de gênero, o respeito à diversidade cultural, os direitos dos portadores de necessidades especiais, entre outras formas de subordinar o saber ao poder. Entretanto, ainda se mantém o costume de, por exemplo, explorar o corpo feminino e apresentar atores afro-descendentes comumente com características de moradores de comunidades carentes ou escravos (no caso de enredos históricos), não deixando de salientar como um evento a oportunidade desses profissionais atuarem num papel de protagonistas, reforçando o embate entre o que homogêneo e o que é distinto.
De qualquer forma, a mídia parece sempre ser a primeira a reconhecer "o outro", e é oportunista quando adota e se utiliza das lutas dos movimentos sociais para transformá-las, literalmente, em produtos a serem consumidos.

Eduardo Carvalho
Pólo de Praia Grande

¹TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América - a questão do outro. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Representações sociais dos Direitos Humanos e Direito Internacional

Texto sobre a entrevista da Profª Ana Maria Klein (Unesp) ao Prof. Solon Viola e a vídeo-aula do Prof. Guilherme de Almeida (USP), para o curso de Especialização "Ética, valores e cidadania na escola" (EVC - USP/Univesp).

O início desta postagem não busca transcrever, e sim parafrasear as colocações do Prof. Solon Viola, numa entrevista conduzida pela Profª Ana Maria Klein (Unesp). É importante notar que o Professor discorre muito sobre o que já foi dito e escrito numa vídeo-aula anterior, comentada num post deste blog: Origem histórica dos Direitos Humanos e sua construção na América Latina e Brasil.
Quando lhe é questionado sobre sua visão acerca das representações sociais dos Direitos Humanos no Brasil, Solon explica que tais direitos são recentes e ainda não se enraizaram na sociedade brasileira, indicando um contraponto, baseado na grande mídia, para a lentidão dessa construção. Considerando que muitos direitos surgiram na luta contra a Ditadura, faz-se importante notar que a mídia reagiu de acordo com os militares e considerou os Direitos (ainda não chamados de Humanos) como defesa para terroristas: buscou preconceitos históricos, alicerçados na cultura tradicional de desrespeito ao outro (escravos, pobres, trabalhadores braçais, indígenas, mulheres etc.). Assim, os Direitos Humanos nascem  como desejo de liberdade e igualdade, contra um pensamento preconceituoso enraizado, reforçado pela mídia.
Como essa concepção preconceituosa pode refletir na sociedade? É preciso considerar o tempo como aliado, pois possibilita alterar o conceito, através do encontro da sociedade com suas conquistas (neste caso anistia, "diretas-já", Assembleia Constituinte e outros direitos civis e políticos). A luta pela terra, moradia e alimento gera uma nova representação dos Direitos Humanos: todos tratados de forma igualitária. Dessa forma, conquista-se uma Educação significativa quando todos os educandos são considerados como seres humanos (que se saibam sujeitos de direitos). É necessário construir salas de aula com outra característica, a saber, que valorize os saberes dos educandos, de forma que o saber cotidiano se expresse tanto quanto o saber formal. Ressignificar os Direitos Humanos é uma exigência do tempo, de construção de uma nova ordem democrática.
A escola precisa entender que seus alunos são seres de direitos e saberes humanos. Os educandos precisam conhecer os Direitos Humanos, através da construção da dimensão do saber humano na sala de aula, constituindo o universal deste saber. Os alunos têm que construir uma organização e diálogos com a democratização da escola. E isso não é simples, porque a sociedade brasileira é historicamente feita de privilégios, com dificuldades em ver o outro como igual em direitos. Nós não conhecemos os Direitos Humanos. Se o indivíduo se sabe como um ser humano com dignidade, irá viver de forma digna. Depois é preciso que, conhecendo, haja movimento para efetivar o que se conhece, num processo democrático. Construir embates constrói a cultura de democratização: a democracia pressupõe o conflito.
O conhecimento estabelecido como cultura humana precisa ser praticado. A escola lida com o saber humano, mas desconhece o saber dos alunos, ficando apenas no formal (muitas vezes ultrapassado); a escola tem seu conhecimento específico, que precisa ser atualizado e vivenciado dialogicamente entre educandos e professores. Se a Educação tiver condições de cumprir este papel, tem grande importância para sociedade e seus Direitos Humanos.
Podem-se problematizar esses direitos a partir da realidade, mas o local não deve ser restrito ao universo fechado da escola. O saber humano, atualmente, tem uma dimensão universal, devido à mídia e à Globalização, obrigando os professores a olhar o papel dos meios de comunicação e seus saberes.
Direito humano é uma dimensão de desejo, de percepção da construção da humanidade. É muito mais que uma declaração ou uma Constituição, é o reconhecimento do outro. É o desejo da condição humana, de que somos iguais, sendo diferentes. É sonhar para além do cotidiano. A escola, os indivíduos, precisam compreender as experiências negativas da humanidade para que não se repitam, não tenham mais lugar na História, num sonho de um pais mais justo e igualitário.

Com relação ao papel da escola na construção de uma cidadania ativa, o Prof. Viola destaca que os Direitos Humanos e a cidadania não são sinônimos, e sim complementares. A História brasileira construiu-se numa cidadania restrita a elites, sendo que vivemos a cidadania (quase) plena há pouco tempo; além disso, ainda entregamos decisões importantes a nossos representantes (na chamada cidadania representativa). Assim, temos a cidadania do tipo ativa em poucas experiências na nossa História. Cidadania é uma parte do direito humano porque este vai além da nação: é um desejo que a humanidade vai construindo, e não se restringe à fronteiras. Cada ser humano tem sua humanidade como condição primeira, enquanto o cidadão precisa da condição geopolítica.
Esta última colocação de Viola relaciona-se a algumas informações dispostas pelo Prof. Guilherme de Almeida (USP), sobre Direito Internacional e Educação em Direitos Humanos, considerando que a noção de "pessoa" é criada pelo Direito: a Certidão de Nascimento dá direitos - inclusive o de frequentar a escola - e a nacionalidade é determinada pela lei de cada país.
Na época da Segunda Guerra Mundial, o Estado nazista apresentou critérios para determinar quem era alemão, excluindo os judeus, que perderam a nacionalidade alemã e seus direitos; chegavam aos campos de concentração sem a proteção jurídica do Estado. Quando se perde a cidadania, encontra-se uma situação de completa vulnerabilidade. No pós-guerra, a comunidade internacional responde com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que logo em seu 1º Artigo estabelece que os direitos são garantidos a partir do nascimento de cada ser humano, e o Artigo 2º garante a não discriminação, criando a proteção internacional da pessoa humana (inclusive para refugiados, apátridas etc.).
A Declaração não tem força vinculante, mas é um instrumento que deve ser estudado e compreendido por todos que trabalham com Educação, para dar vida cotidiana a este instrumento. Para isso, é preciso ver qualquer pessoa como sujeito de direito. Não deve ser apenas uma norma escrita, mas fazer parte da prática pedagógica dos professores e da escola, na qual se pense na pessoa como o que ela pode vir a se tornar, cada um com seu próprio desenvolvimento e maneira de ser, proporcionando diversas oportunidades para essa construção.
Tal prática pedagógica pode orientar-se pelos caminhos do Direito Internacional, a começar pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, seguida da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (Convenção de Genebra) de 1951, continuando com a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1966), e mais tarde pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres de 1979, além da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e, mais recentemente, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2007. Este caminho longo e ainda pouco conhecido e explorado busca universalizar o direito para todos, e especificar o sujeito de direito: cada pessoa, na sua especificidade, vai ter direitos diversos (apoios e auxílios técnicos).
Esta caminhada torna-se tensa quando se especifica demais o sujeito e se esquece da universalidade, gerando um embate entre as políticas públicas universais e as focalizadas. Exemplificando, após todas essas informações, pode-se compreender de outra forma o fato de um deficiente visual poder estar acompanhado de seu cão-guia no metrô, enquanto aos demais passageiros não é permitido o porte de animais. Tal contradição para situações deste tipo pode ser resolvida com uma prática sugerida desde Aristóteles: o bom senso.

Eduardo Carvalho
Pólo de Praia Grande

sábado, 21 de abril de 2012

Globalização, convivência democrática e seus impactos nos estudos culturais

Algumas informações deste texto provêm das vídeo-aulas do Prof. Mário Nunes (USP), para o curso de Especialização "Ética, valores e cidadania na escola" (EVC - USP/Univesp). Acrescento outras fontes e minhas observações, para contribuir no debate.

Qual o papel da Educação frente ao mercado globalizado? De acordo com o Prof. Mário Nunes, a Globalização pode ser definida como "um impacto avassalador dos processos econômicos globais, incluindo processos de produção, consumo, comércio, fluxo de capital e interdependência financeira". Dessa forma, os profissionais passam a encontrar a instabilidade, como novas demandas no mundo do trabalho. Com o surgimento de instituições supranacionais - cujas decisões moldam e limitam as opções políticas dos Estados-Nações - e a ascensão do neoliberalismo como discurso político dominante, gera-se uma mão de obra internacional e cada vez mais competitiva, com a crescente importância da produção intensiva do capital.
Assim, as novas formas culturais, e os meios e tecnologias de comunicação globais definem as relações de afiliação, identidade e relação entre as pessoas, criando um conceito de equipe como norma de organização do trabalho.

A maioria das pessoas - leigas ou não - reconhece que o ser humano é dotado de cultura e que ela é muito importante para o funcionamento da humanidade; mas não consegue descrever o que seria essa cultura, que geralmente é definida através de exemplos como poesia, música e pintura clássicas (definidas como cultura erudita) ou carnaval, lendas, crenças e esculturas em argila de personagens folclóricos (tidas como cultura popular); mas explicar por que tudo isso é cultura torna-se complicado. Outro problema que encontramos dentro da cultura é a dificuldade de aceitação, ou mesmo reconhecimento, por parte de um indivíduo, de culturas diferentes da sua. Comumente, tomamos como base a nossa própria cultura para definir seu verdadeiro significado; então, as sociedades que agem de forma diferente da nossa devem rever suas normas e valores; além disso, exploramos uma escala evolutiva unilinear, onde se considera que alguns de nossos contemporâneos, por viverem em um estado julgado como selvagem ou bárbaro, ainda evoluirão até o "ideal", ou seja, nossa civilização ocidental moderna.
O antropólogo Roque de Barros Laraia, em seu livro Cultura: um conceito antropológico¹, pretende mostrar de uma maneira prática a atuação da cultura. Explica que a cultura condiciona a visão de mundo do homem: “o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura” (p. 70). Indivíduos de culturas diferentes podem ser facilmente identificados por uma série de características; todos os seres humanos são dotados do mesmo equipamento anatômico, mas a utilização do mesmo depende do aprendizado.
Etimologia, de Roberto Weigand
“O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada de etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais” (p. 75). Uma oposição ao etnocentrismo, a apatia, ocorre quando numa dada situação de crise os membros de uma cultura desconsideram seu valor, perdendo a motivação que os mantém vivos e unidos.
Todo sistema cultural tem sua lógica própria e a coerência de um hábito cultural somente pode ser analisada a partir do sistema a que pertence: as culturas que não possuem meios materiais de observação científica dependem de conclusões tiradas a partir de observações diretas, valendo-se apenas do instrumental sensorial que dispõe.
A mudança cultural interna é resultante da dinâmica do próprio sistema cultural. Outro tipo de mudança vem do conceito de aculturação, dado no contato de um sistema cultural com outro, o qual é o mais atuante na maior parte das sociedades. O tempo também constitui um elemento importante na análise de uma cultura: por várias vezes cada cultura sofre embates entre as tendências conservadoras e inovadoras. “Entender essa dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos” (p. 105).

Após dispor sobre os conceitos aqui apresentados, volta-se à pergunta inicial, relacionado essas informações à Educação: uma vez que se trata de construir conhecimento e vida em comum, o educando está imediatamente convocado a participar do debate, a começar pelo espaço escolar: só será possível desenvolver a capacidade de uma tomada de posição consciente se - durante a exposição do professor, em sua própria exposição oral, na discussão em pequenos grupos ou num debate generalizado em sua turma - ele tiver e atribuir de modo regular aos interlocutores a oportunidade de, com toda liberdade, perguntar, responder, solicitar e fazer esclarecimentos, opor-se, criticar, confrontar diferentes posições e possibilidades, recusar interpretações, fazer interpretações e, em especial, mudar de posição quando estiver convencido de que a sua pode não ser necessariamente a melhor.

Eduardo Carvalho
Pólo de Praia Grande

¹LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Origem histórica dos Direitos Humanos e sua construção na América Latina e Brasil

Informações baseadas nas vídeo-aulas do Prof. Solon Viola (Unisinos/RS), para o curso de Especialização "Ética, valores e cidadania na escola" (EVC - USP/Univesp).

De acordo com o Prof. Solon Viola (Unisinos/RS), os Direitos Humanos definem-se como uma construção histórica feita pelos povos, e não apenas um documento com normas criadas verticalmente por grupos específicos.
Dessa forma, podem-se considerar como as primeiras manifestações desses direitos os rituais relativos a nascimentos e funerais. Nomear filhos e chorar por parentes mortos parece ser um direito natural, mas pode ser visto como conquistas humanas quando governos (em seus diversos tempos e formas) negam esses direitos aos menos favorecidos de privilégios. Exemplificando, o Prof. Solon cita a tragédia grega de Antígona, que debate com o rei seu direito de enterrar familiares. Ainda na Antiguidade, a Ágora (praça pública) era um espaço em que os cidadãos  exerciam o direito de discutir sobre os rumos da cidade (mesmo que esses direitos estivessem restritos somente aos homens livres e não estrangeiros).
Na Idade Média, período de graves problemas de fome, terra e privilégios, também foi exercido o direito à rebelião contra a desigualdade, como a Jacquerie na França e Watt Tyler na Inglaterra.
Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, 26 de agosto de 1789.
O mundo moderno viu a continuação das desigualdades e o poder concentrado nas mãos de alguns monarcas, no período conhecido como Absolutismo. Em resposta, a Revolução Francesa fez proclamados os direitos de liberdade, igualdade e fraternidade e a criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), um dos primeiros documentos do gênero. Já na América, as guerras de independência resultaram em outro: a Declaração de Direitos de Virgínia (1776). Assim, essas declarações surgem como um movimento da sociedade contra alguma forma de tirania.

Entretanto, segundo o Prof. Solon, no século XIX percebeu-se que a igualdade não se concretizou, pois a Revolução Industrial e a vida urbana tornaram necessário o retorno das lutas pela igualdade, através dos movimentos sociais.
O século XX, período das Grandes Guerras, desenvolveu também a tecnologia a serviço da morte, além de graves problemas de discriminação - com os campos de concentração - e a destruição em massa com as bombas nucleares. Portanto, o mundo pós-guerra tomou consciência do poder de destruição do planeta, aliado ao medo da morte. Além disso, desde então, assistimos a constantes e diárias guerras oficiais e não oficiais ao redor do mundo.
Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 veio como uma resposta às guerras, definindo tais direitos como possibilidades para além do terror e impedir novas destruições, buscando a recuperação da noção de liberdade, igualdade e fraternidade.
Neste contexto, o Prof. Solon define a Declaração como "mais uma utopia a ser percorrida pelo ser humano", pois utilizar os Direitos Humanos, apenas para responder aos problemas de cada época, não resolve. Ademais, hoje encontramos novos impasses, relativos ao meio ambiente, ética e mídia que não eram tão evidentes há 60 anos. Os Direitos Humanos devem ser uma construção cultural, com a união das diferentes pessoas - iguais em direitos - lutando pela liberdade.
Os Direitos Humanos chegaram de forma tardia na América Latina - e no Brasil -, sendo que a definição de tais direitos como "humanos" só foi utilizada recentemente. Isso se deve às características das sociedades americanas, formadas pelos colonizadores e uma aristocracia repleta de privilégios, em detrimento de uma maioria sem direitos à condição humana.
No Brasil, os direitos aqui discutidos surgem como uma negativa dos privilégios, inicialmente através das revoltas de indígenas, seguidas por resistências de escravos, e as rebeliões coloniais - na maior parte organizadas por elites econômicas desejosas de espaço político, utilizando a população como massa de manobra. Dentre as conquistas, mesmo após a proclamação da República, o voto era um direito baseado na posição sócio-econômica do indivíduo (voto censitário), e também excluindo as mulheres.
Assim, a continuidade do desigual permanece, e a luta pelos direitos passa a se encontrar em rebeliões populares, como Canudos e Contestado, que buscavam construir sociedades com autonomias em relação ao poder vigente. Nas cidades, ainda no período de início da Repúbica, são reivindicados direitos sociais (ou civis, como salários dignos, organização sindical ou partidária), direitos trabalhistas e sócio-econômicos, enquanto o Estado considerava tais movimentos como desordeiros e ilegítimos, revelando ausência de cidadania.

Retomando as questões do pós-guerra, o Brasil, nesta época, incorpora partes da Declaração Universal dos Direitos Humanos à Constituição e ignora outras, como a livre organização partidária.
Infográfico sobre o processo que levou à
instauração do AI-5.
Entretanto, com a instauração da Ditadura Militar a partir de 1964, tem-se a negação absoluta das conquistas sociais construídas até aqui, através do terror e supressão de direitos pelo próprio Estado. Desde então, ocorreram muitas manifestações contra o regime, por parte de estudantes, operários e artistas. Essas passeatas foram duramente reprimidas pela polícia, mas os protestos se intensificaram, principalmente após a morte do estudante Edson Luís Lima Souto, numa manifestação. O ponto alto foi a Passeata dos Cem Mil, em junho de 1968. Em resposta, foi decretado o AI-5 em 13 dezembro do mesmo ano, com autorização ao presidente (eleito de forma indireta) para decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias legislativas e das Câmaras dos vereadores, decretar a intervenção nos estados e municípios, cassar mandatos, decretar estado de sítio, decretar o confisco de bens, entre outras supressões de direitos.
Entretanto, continuaram as lutas pelas liberdades e recuperação dos pressupostos das igualdades, buscando um mundo sem censura, manifestação de pensamentos, organizações, anistia (direitos ainda chamados apenas como políticos ou civis). Intensificam-se os movimentos que denunciam a tortura, crimes contra a humanidade e exigem liberdade partidária, a convocação de uma Constituinte soberana e eleições diretas. Crescem os partidos de oposição, fortalecem-se os sindicatos e as entidades de classe. Em 1984, o país mobiliza-se na campanha pelas Diretas-Já, que pede a eleição direta para presidente.
Essas lutas constituem a construção dos Direitos Humanos no Brasil (direitos civis e políticos), necessários para a reorganização da sociedade brasileira.
Atualmente, o Brasil encontra-se num período de "movimentos múltiplos" pela terra, moradia, alimento, igualdade, diversidade sexual, étnica (direitos civis e econômicos), a maioria deles num lento processo que revela a dificuldade da sociedade brasileira em usufruir, de fato, dos Direitos Humanos. Quanto à Educação, precisa-se que  as escolas se incorporem a esse processo, buscando formar alunos e professores como sujeitos de direitos.
Eduardo Carvalho
Pólo de Praia Grande